“A guerra tinha acabado no dia anterior. Foi na manhã de um domingo que chegou
aos meus ouvidos desatentos a notícia do armistício e ali eu soube que estaria livre.
Não faz sentido trazer à superfície a dor do passado e afogar meus olhos nas
mesmas lágrimas. Por isso, tudo o que precisa saber é que eu e meus compatriotas
saímos do quartel e deparamo-nos com um mundo que já não nos conhecia.”
Com essas palavras, eu comecei e terminei o meu relato ao velho que pedia-me
uma história de vida. Ele era um senhor, típico vitoriano, que adentrou o bar não
fazia dois minutos. Alguém aleatório. Pela quarta vez naquela noite, virei o gargalo
da bebida em direção à minha boca e engoli o gim. Senti o líquido ardente percorrer
a minha garganta, queimando-a sem escrúpulos. Contudo, apreciei essas facadas
internas. Depois, debrucei-me um pouco mais sobre o balcão como se quisesse
dormir, e talvez dormisse mesmo se o velho parasse de me encarar do banco ao
lado. Suas feições inconformadas me alertaram sobre a sua insatisfação com o meu
breve relato, mas mesmo assim perguntei o que lhe passava.
O velho fitou-me, desconfiado das minhas faculdades mentais, e respondeu: “Ora, o
senhor não me disse nada! Qualquer outro soldado poderia ter me dito o mesmo ou
algo similar! Eu quero uma experiência única. Você deve ter algo tenebroso,
animado ou misterioso para contar, não? Afinal, esteve na guerra por mais de dois
anos!”.
Desviei o olhar para o teto em uma atitude certa de quem pensa na pergunta antes
de respondê-la. Porém, eu não pensava na pergunta. Eu desviara o olhar apenas
numa tentativa de conter as minhas antigas emoções que ameaçavam voltar. As
palavras do velho haviam repercutido com força em minha mente e evocaram
lembranças fundas e dolorosas. Não ousei mover o rosto, apesar do desconforto no
pescoço, pois temia que qualquer movimento destruísse as barreiras as quais há
muito tempo me agarrava. O velho, por fim, notou a minha postura rígida e adotou
outra estratégia: “Caro senhor, eu só desejo uma história com algumas palavras a
mais!”.
Eu não conseguia compreender a sua ânsia por histórias de vida, talvez estivesse
mais ébrio do que se afigurava a mim. Mas eu sabia de que nada do que falasse
alcançaria suas expectativas. Eu conhecia o pensamento do povo: ele criava
fantasias, beirando o sobrenatural, no que tangia à vida de um soldado. Contudo, a
realidade era bem natural e até comum. Por isso, sabia que a decepção do velho
era inevitável. Eu queria ir embora dali e iria, se algo nas mãos ansiosas dele não
me fizesse volver ao banco. Decidi que lhe daria o que desejava: eu contaria um
pouco mais…
“Tudo bem, tudo bem…". Inspirei fundo enquanto tomava alento.
“Eu fui para o exército porque tomei o lugar do meu irmão. Toda família do país
tinha que contribuir com um filho, então fui eu. Foi uma das decisões mais fáceis
que já tomei. Sabe, eu sempre fui um tolo e não guardava esperanças para o futuro,
senão aqueles brilhantes filmes onde meu irmão prosperava. Assim, senti-me na
obrigação de apressar as despedidas e ir lutar naquelas guerras horrendas. Eu
sobrevivi a tudo, mas isso não significa que não acordava um pouco morto toda
manhã. Sei que se falasse algo assim a Tahid ele diria: ‘Melhor morto que
simplesmente existindo’. Não sei se alguma vez entendi mesmo o que Tahid queria
dizer… Também nunca cheguei a saber de onde viera e tampouco qualquer coisa
sobre sua antiga vida. Contudo, nada disso conseguiu estorvar a amizade que
cresceu entre nós. Mal o encontrei e formou-se um laço de amizade que independia
das coisas que o mundo julgava pertinente. Ele era o meu esteio quando a fraqueza
ameaçava dobrar-me e eu faria tudo para impedi-lo de cair. Tudo…” Aqui parei.
Tentei engolir uma pedra que se formara na garganta ao evocar reminiscências.
Fiz, do beber o gim, um pretexto para a repentina pausa na narrativa. Respirei.
Observei o velho que me assustou por um momento: ele tinha os olhos
lacrimejados…? Não sei. Virando o rosto, percebi que tinha mais ouvintes… Não
era minha intenção, mas eu não ia parar agora. Continuei. “Nós vivíamos tão bem
quanto duas almas desesperadas que encontram finalmente uma razão. Entretanto,
um dia chegou (antes dia nenhum tivesse chegado!) e tudo mudou. Tahid foi
atingido. O ferimento atravessou a jugular direita. Era mortal. Nada mais importava.
Sem me atentar às bombas e aos tiros que cruzavam o ar, corri até a nossa base:
uma trincheira. Deitei Tahid em uma maca e comecei a rasgar minha regata
intentando usá-la para estancar o sangue que escorria pelo seu pescoço. Mas
qualquer ação minha era inútil. Depois de um tempo, Tahid agarrou o meu colarinho
e me puxou para mais perto. Ele sussurrou: ‘O mundo é bom, John…’. Eu balancei
a cabeça como se concordasse, mas eu concordaria e prometeria qualquer coisa a
ele ali.
Seus olhos estavam quase fechados quando o grande poeta disse suas últimas
palavras: ‘Nunca mude, John’. Lágrimas misturaram-se ao meu suor. Eu queria falar
alguma coisa… e ao mesmo tempo as palavras não surgiam. Quem aqueles
bárbaros pensavam que eram para tirar a vida do meu amigo? Perdi as contas de
quantas vezes soquei o chão; só parei quando meus dedos começaram a sangrar.
Urrei como um animal ferido, enquanto a vida do meu amigo esvaía-se e eu não
podia fazer nada! Por um momento, nada mais existia além de Tahid e eu. Os
artistas, os poetas, os escritores, os médicos, os engenheiros, os advogados… Não
importava nada disso. Éramos só eu e Tahid. Fiquei até o seu último suspiro. Fui
embora. Não sei para onde. Em vão e ao relento, eu acho…
Não sei como cheguei ao quartel. Mas logo amanheceu e saí em busca da minha
velha casa. Encontrei a rua destruída. Depois de algumas perquirições, eu entendi
que minha família estava no exterior: tinha fugido das bombas. Meu primeiro
impulso foi procurá-los. Meu segundo, não procurá-los. E este foi o mais forte. Seria
direito voltar depois de tanto tempo fora? Eu seria mais uma boca para alimentar em
um período de crise. Então, me decidi. Um sol de meio-dia ardia no céu à guisa de
desprezo pelo modo deliberado com que estava prestes a esmagar meu coração:
mais uma vez eu iria embora.
No entanto, encontraria algo com o que me ocupar. Desejei calorosamente que isso
fosse um paliativo eficaz contra tantas perdas. Como Tahid gostava de ler poetas,
pensei em também ler alguns. Primeiro teria que me alfabetizar e depois leria.
Todavia, eu não sabia que sentido um monte de rabiscos em um papel poderia ter.
Afinal, nenhuma palavra, nem o conjunto delas poderia expressar um milésimo da
dor e do desespero que me dominava! Eu tinha como certo o fato de que as coisas
seriam difíceis para mim, mas o destino não precisava me deixar sozinho! Eu perdi
tudo. E para todos os fins, era tarde demais!” Terminei com algum esforço a história.
Não tinha percebido como meu peito arfava. Minha blusa estava molhada.
Algumas pessoas levantaram e foram ao banheiro do bar. Uma fila bem extensa
avisou o dono do bar que teria que retardar o horário de fechar as portas. Meus
olhos embaçados que vagavam, inopinadamente, encontraram os olhos do velho.
Os dele estavam encharcados e lágrimas respingavam na sua blusa. Ele falou: “Não
é tarde demais, filho!” Essas palavras acenderam algo na minha mente apagada e
consegui ver o que o entorpecimento me impediu de perceber: o velho era meu pai
e minha família estava logo atrás…
Autora: Luiza Costa Calazans
Postado por: André Tomaz
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