Meus ouvidos há muito já haviam percebido o som insistente do chiar da chaleira repousada na boca do fogão. Mas para minha irmã não havia pressa. Tudo se desenrolava no tempo certo. Seus gestos eram eficientes e silenciosos, como os de um felino em sua caçada noturna. Gentilmente, despejou uma quantidade generosa de água em uma das delicadas xícaras de porcelana, da qual, em poucos segundos, elevou-se uma coluna de vapor. Seu andar era polido, amparado pela elegância de um par de longas pernas, enaltecidas pelo caimento de seu vestido, cujo farfalhar, desde o momento em que pousara o par de pires sobre a mesa até quando se sentara na almofada da cadeira, revelava a graciosidade de uma princesa. Às vezes, sua semelhança com mamãe dava-me arrepios.
— Preparei o seu preferido. Camomila, não é? Não. Hortelã.
—Obrigada. — Agradeci, bebericando um gole. Concentrei-me na sensação do calor espalhando-se pela minha língua, adormecendo meu paladar.
—Biscoitos? — Ofereceu, estendendo-me uma tigela com sequilhos. Recusei, acentuando a delicadeza em minha voz, embora, por dentro, meu estômago revirasse com visível mal estar
— Queria que falasse comigo. — Disse, enquanto remexia o chá, com desânimo. Estava visivelmente chateada, os lábios contraídos como que engolindo as palavras que não deviam deixar de ser apenas pensamentos.
— Verônica, não recebia notícias suas há quase três anos. — Agora ela olhava para mim, as mãos repousadas no algodão da toalha bordada.
— Você simplesmente desapareceu sem dar qualquer explicação. Um bilhete, um telefonema, nada. E agora retorna, sem mais nem menos, silenciosa como uma pedra?
Não respondi. Meus pensamentos direcionavam-se a direções opostas, emaranhando-se em memórias aturdidas pelo tempo. A iluminação era verde, cor de abacate. Ruídos altos ao fundo; brindes, música, risadas. Vacilantes, passos de salto alto lançavam-se para fora do mar de festividades, entre sorrisos e palavras inaudíveis. A um passo da liberdade.
— Desculpe. — O tom permanecia calmo.
— Não sei pelo o que está passando. Mas é por isso que desejo lhe ouvir, minha irmã. — Seus dedos aproximavam-se dos meus, entrelaçando-se neles como novelos de lã.
— Mais do que imagina. Mas não havia nada a se dizer.
Desta vez ela se afastara com a mesma agilidade com que se aproximara, quase evitando com que eu a notasse, agora de pé, encoberta pela sombra da grossa cortina que encobria a única janela da cozinha.
— Não compreendo. Por que deixar seu trabalho, que tanto ama? Várias exposições marcadas em galerias renomadas, públicos ansiosos para assistir às suas performances sagazes, críticas certeiras, penetrantes. Seu sucesso era certo. Quando sumiu, os jornais não falavam em outra coisa. — Parecia mais ponderar para si mesma em voz alta do que dirigir indagações a mim.
— E claro, seus amigos, sua família. Você abandonou a todos, Verônica. Abandonou a mim. — Notei um teor de amargor em sua voz. Parecia que estávamos mais distantes do que nunca.
— Antes, cheguei a pensar que havia sido sequestrada. Que algo terrível havia lhe passado. Senti-me muito angustiada. Mamãe… mamãe também. Começou a pensar em uma porção de coisas. Coisas sem nexo, coisas… Como o acidente que sofreu quando pequena.
O ranger de uma porta. O ruído da fechadura. Verde, verde, verde. Mais passos. A um passo da liberdade.
— Disse que não havia porque resgatar tais acontecimentos. Mas ela insistia. Dizia que era sua culpa. Que desde cedo não soube lhe proteger direito, que sempre a perdia, como um tronco arrastado pela correnteza. Mas não é verdade. Naquele dia, se alguém foi o responsável, esse alguém fui eu. Se eu não tivesse me recusado a brincar com você, talvez... Talvez você não teria implorado para ir naquele passeio de barco. Sou sua irmã mais velha, era meu dever. Deveria cuidar de você. — Sua expressão era séria. Sabia disfarçar muito bem seus sentimentos quando queria.
— Se algo tivesse acontecido a você eu… Não sei como me sentiria. Aos poucos, as lembranças de um dia quente de verão invadiam a minha mente, com seus aromas de grama úmida e perfumes de lavanda. Eu, ainda criança, sentada em um dos bancos do barco, observando Irene, que se apoiava em uma pedra, segurando o vestido com as duas mãos para protegê-lo da força do vento.
Uma mulher, jovem e bela, que jamais esqueci, fotografando os arredores com sua máquina de bolso. Outros casais e famílias com ou sem filhos. É engraçado pensar sobre como as circunstâncias podem alterar-se tão subitamente. Dentro de alguns minutos, era engolida pelo grande volume de água à minha volta. Sim, tudo estava claro para mim. No entanto, não há motivo para tentar encontrar um culpado. Não existem mágoas no que se refere a esse acontecimento.
— Pare. — Minha voz falhou um pouco. A boca estava seca. Minha irmã ergueu a cabeça, surpresa com minha intervenção repentina. Aproximei-me, envolvendo-a em um abraço. Sua pele era macia e sem rugas. Estava jovem. Ambas estávamos jovens, embora não parecesse. Gradualmente, separamo-nos. Esbocei um sorriso, analisando suas feições.
— Perdoe-me. — Sibilei. — Mas eu nunca desapareci. Estive presente o tempo inteiro. — Coloquei as mãos no bolso do jeans. Noiva, vestido de noiva. Onde está a noiva? O véu, arrastando-se em uma profecia. No centro do cômodo, um grande aquário. Peixes de todas as cores e tamanhos. A um passo da liberdade.
— Devo ir agora. — Declarei. Não queria machucá-la, mas seus olhos já estavam marejados. — Não se preocupe, irei voltar. Será mais breve do que imagina.
— Virei-me, em direção à porta. Senti suas unhas arranhando levemente meu pulso.
— Ainda está presa ao passado?
— Questionou, demandando urgência.
— Verde. Saia verde. Tarde de dezessete de setembro de mil novecentos e noventa e três. — Ela soltou-me no mesmo instante, e então parti.
Pelas ruas, observei cada detalhe. Em diferentes épocas da vida, o mundo pode ser visto de maneiras completamente distintas. No meu caso, era como se estivesse vendo a cidade pela primeira vez em três anos. Acendi um cigarro. Vinte e sete anos. Daqui a dois dias, vinte e oito. Uma mulher adulta, pós-graduada, recém divorciada. Apesar disso, sonhava como se cria fantasias na infância, figuras pipocando e materializando-se nas rudes formas da realidade. Pensei no que Irene me disse, há poucos momentos. Presa ao passado. O que isso significa? Para a maior parte dos seres humanos, é comum a criação de apego a determinados objetos, pessoas, eventos anteriores ao tempo presente. Contudo, memórias são mais complexas do que isso. Certas vezes, algumas delas, mesmo que repletas de particularidades aparentemente irrelevantes e aleatórias, podem incrustar-se de tal forma em um indivíduo que é irracional procurar elucidar as causas que o levam ao desenrolar de conexões intensas e confusas, até que tudo resulte em um grande rolo de vivências estranhas e amarradas entre si, em um elo inquebrável.
Nos últimos três anos, abalei-me de tal forma que desviei por completo de todos os caminhos que esperavam que seguisse. Abandonei meu trabalho como artista plástica e performática de renome para pintar quadros no anonimato, confusos e abstratos. Mudei meu nome. Cortei meu cabelo. Casei-me com um historiador, creio que porque, assim como eu, ele era apaixonado pelo ontem. No entanto, jamais desapareci. Mudei de endereço, mas nunca de cidade. Não queria dar satisfações a ninguém. Minha mãe há muito tempo havia sonhado com o dia em que eu me casaria e constituiria uma família, mas esse momento já havia passado. Ela já tinha aceitado que seguiria minha vida de maneira diferente. Por isso, apenas preferi deixar que tudo ocorresse naturalmente, sem que alimentasse expectativas ou causasse perguntas. Todavia, parecia que eu havia me tornado invisível a todos durante meu período de fraqueza, de mudança. Tarde de dezessete de setembro de mil novecentos e noventa e três. Há dois anos, vi minha mãe e minha irmã em um parque. Elas também me viram, mas não me reconheceram. Senti que, naquele momento, eu já não era mais a mesma de antes. Magoei-me por terem julgado que eu as havia deixado. Magoei-me comigo mesma.
Mas a liberdade estava chegando. Eu a via. O aquário. A mulher de cabelos castanhos e véu longo, cansada de caminhar com saltos daquele tamanho, aproximando-se, e colocando uma das mãos no fundo, entre as pedras. Os peixes a beijavam, afoitos pela presença humana. Dali, uma chave, retirada como uma jóia preciosa. A um passo da liberdade. Senti-me tonta. Mas era a hora. Segui, agora, precisamente, ao destino que desejava. Cento e oitenta e três.
Toquei a campainha, experimentando certo sentimento de alívio. Esperei. Segundos depois, ele abriu a porta. Seus cabelos estavam bagunçados e molhados. Usava terno e gravata, mas ainda colocaria os sapatos. Parecia estar a caminho do trabalho. Mas Samuel deixou-me entrar imediatamente. Não precisei emitir uma única palavra, pois ele compreendia. Caminhei em direção ao cômodo, ao antigo aquário, agora vazio, e coberto por um lençol velho. Retirei-o, mas não havia nada. Ele ajudou-me a procurar. Procuramos por cada canto da casa, cada mínimo pedaço que carregasse alguma lembrança dela, alguma lembrança de sua mãe. A linda fotógrafa de cabelos castanhos. Com esforço, encontramos, em um velho baú, a velha chave. A chave. Algo que poderia abrir portais diversos. Choramos. Testamos as fechaduras. Uma caixa de música. Cartas, fotos, recordações. Não a abrimos logo. Ele sugeriu que fôssemos para o mar. Tem certeza? Perguntei. Ele não hesitou.
Na beira das águas, deliciamo-nos com aqueles recordes. Resgatei a aparência de sua mãe. Seus cabelos esvoaçando no calor de junho. A gentileza em seus olhos. Seu nome era Helena. Ele me contou sobre ela, sobre o que lembrava dela, embora ainda fosse muito pequeno quando tudo aconteceu.
Refletimos sobre aquilo que podíamos compartilhar um com o outro. Sobre como casou-se com seu pai, mesmo não o amando. Sobre como adorava as pessoas mais do que si mesma. Sobre como havia depositado a entrada para seus pertences mais íntimos nas profundezas de um aquário. Amores não realizados, sonhos flutuantes, dores incuráveis. Sobre como havia escrito uma série de livros, os livros que li, na biblioteca, certo dia, quando vi sua foto pela primeira vez, e me recordei de tudo. Quando nossas vidas se entrelaçaram por completo. Samuel mergulhou, de terno e tudo, em meio ao esverdeado das águas. Fiz o mesmo. Sorri. Verde. Liberdade. Quantos passos ainda faltam?
Editor: Iago
Autora: Gabriela Queiroz Gomes Galdino
Perfeitoo