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Penumbra

Foto do escritor: csmnewscsmnews

A mulher ao meu lado parecia demonstrar perturbação diante da minha aparência pouco polida; os cabelos molhados medonhamente desgrenhados, os olhos arregalados e desfigurados pelo borro daquilo que havia sido uma tentativa de maquiagem, o vestido de seda prensado na pele e o sutiã rendado à mostra e os sapatos que eu jamais abandonava encharcados e agora com pequenos furos nas laterais. Incomodada com os olhares excessivos através do reflexo do espelho, abandonei a toalha que usava para secar as madeixas e joguei a cabeça para frente, intensificando ainda mais a bagunça e o volume — que, por sinal, me agradavam — para, finalmente, fitar-lhe com a expressão mais exagerada possível, na esperança de espantar-lhe. Por sorte, em poucos instantes, a madame caminhou para fora do recinto, com seu andar esnobe, disposto a pisotear tudo o que visse pela frente.


De todo o modo, eu sequer deveria estar ali, naquele restaurante refinado cujo prato principal custaria quase a metade do meu salário e rodeada por pessoas que estranhavam a minha presença, pois certamente eu não pertencia ao padrão com o qual estavam acostumadas a conviver. No entanto, meu costumeiro desajeito havia, entre outras coisas, resultado na ausência de um guarda-chuva na bolsa, e, por consequência, na desesperada tentativa de abrigar-me da tempestade no local mais próximo possível, levando-me a consumir a garrafa de água mais cara que já vira na vida, o que ao menos me deu a desculpa de usar o banheiro perfumado com uma versão sofisticada de capim-limão e adornado com pinturas cubistas emolduradas nas paredes.


O restante do dia não havia sido, tampouco, dos melhores. Mais uma vez, minha tentativa de expandir meus círculos de interação social, através da ida a uma reunião com alguns colegas de faculdade, foi permeada pela esquisitice dos meus gestos, minhas falas embargadas e risadas fora de contexto. Era difícil não me achar completamente constrangedora em público na maior parte do tempo, por isso sempre preferi limitar tais exposições e evitar frustrações pessoais. Depois do encontro desastroso, decidi adentrar um fliperama antigo, substituindo todas as possíveis crises existenciais posteriores por vitórias em jogos de luta e corrida dos anos noventa, o que também surtiu efeito contrário, considerando que fui vencida três vezes por um grupo de adolescentes. No mínimo, pude me divertir comigo mesma porque, de algum modo, eles pensaram que eu não perceberia as adulterações que fizeram nos equipamentos, e, na contramão, demonstraram interesse nas minhas táticas pouco aperfeiçoadas.


Exausta, deixei o estabelecimento com um aspecto um pouco menos desleixado e lancei-me para dentro do primeiro táxi vazio que atravessou a avenida. O taxista cheirava a cacau e era elegante como um pássaro, mas não pareceu se incomodar com meu aroma de terra e orvalho, muito menos com meu telefonema arrastado com um homem cujos encontros não haviam suscitado em mim nenhum tipo de atração ou sentimento especiais.


— Boa noite, senhor. — Despedi-me, enquanto guardava o troco na carteira, depois irritando-me com a quietude com a qual minha voz foi proferida.


— Cuidado com a tempestade, moça. Já ouvi muitos casos hoje no rádio de pessoas engolidas pelas enchentes ou esmagadas por troncos de árvore. — Disse ele, pausadamente, quando estava prestes a abrir a porta traseira do carro. — O mundo está cada vez mais louco, não é? — Completou, dessa vez olhando-me diretamente pelo retrovisor.


Que jeito curioso de se escolher as palavras, pensei.


— É verdade. — Respondi, intrigada. A pequena fresta que havia aberto com o ambiente exterior já expirava grande ventania e caos.


— Obrigada. — Agradeci, finalmente, empurrando as pernas inchadas para fora do veículo. Ele movimentou a cabeça de modo sutil, parecendo satisfeito com minha resposta.


Caminhei depressa para debaixo do toldo desbotado que envolvia parte da calçada, onde um grupo de garçons mobilizava-se para afastar o avanço imponente das águas com seus rodos compridos. Parei alguns instantes antes de entrar para observar o táxi do motorista elegante atravessando a avenida, e então misturando-se em meio às luzes de uma cidade inquieta e fatigada pelos trânsitos movimentados e jornadas de trabalho incansáveis.


Assim que cumprimentei os funcionários do restaurante, já acostumados com meu espírito reservado e introvertido, a tensão nos meus ombros aliviou-se quase que instantaneamente, ao pensar que o cardápio atenderia às minhas condições financeiras, e que a familiaridade com as pessoas que ali frequentavam me livraria do desconforto de ensaiar mentalmente meus movimentos e diálogos com estranhos.


Sentei-me no local costumeiro, em um dos bancos do balcão do pequeno quiosque, onde o barman cortava limões, limpava garrafas de cerveja e preparava coquetéis cítricos. Dali, eu podia contemplar uma visão ampla das mesas cobertas com toalhas brancas de algodão, bem como dos diferentes rostos iluminados pelo reflexo dos faróis dos carros que se movimentavam continuamente do lado de fora. Às vezes, eu abria um bloco de anotações velho e, com minha ausência de técnica em desenho, esboçava as figuras trêmulas pelos clarões confusos, entretida pela ideia de imaginar as vidas ocultas nos traços incertos.


Pedi uma taça de vinho tinto e uma fatia de torta de palmito, e deitei a cabeça levemente para o lado para assistir à pequena televisão instalada na parede, desinteressada. O dono do restaurante, entretanto, parecia bastante atento à reportagem do jornal da noite, decidindo até aumentar o volume no controle remoto.

Nas últimas duas semanas, cinco ativistas ambientais foram brutalmente assassinados na cidade mineira de Lírios D'água, sob circunstâncias misteriosas. Tudo o que se sabe até o momento é que todas as vítimas atuavam na proteção da área de Mata Atlântica restante da região e faziam parte de uma comunidade agrícola autossuficiente local. As investigações ocorrem em sigilo.


Detestei amargamente o calafrio que percorrera minhas costas, assim como detestei o ranger sofrido da porta de vidro, anunciando a chegada de mais um cliente, de mais uma presença para intimidar-me no silêncio dos meus pensamentos. Entretanto, meu descontentamento não fizera com que as figuras fragilizadas deixassem de irromper, uma a uma, a solidez da realidade que havia orquestrado com tamanha dedicação. Primeiro, a nudez dos campos virgens em contraste com as crescentes plantações de arroz e milho nas encostas verdejantes, prenunciando os conflitos de tradições do modesto povoado, composto, em sua maior parte, por pequenos fazendeiros e artesãos cujas habilidades ultrapassavam os limites da ancestralidade. Depois, os movimentos revolucionários jorrando pelas esquinas, em encontros noturnos em bares e praças cujas formas moldavam-se conforme o andamento dos discursos apaixonados. Nesse contexto, uma garota desajeitada, ainda abismada com a simultânea pequenez e grandiosidade do mundo que a cercava, pouco estimulada pelo ambiente escolar e as minúcias dos conflitos corriqueiros, mas inteiramente fascinada pelos livros e pela música que seu pai amava tão encarecidamente. Algumas lembranças mais impressionantes do que outras obcecavam meu subconsciente, como a morbidez de uma cozinha saturada de facas de todos os tipos e tamanhos, erguidas nas paredes como imponentes troféus, e as vozes, abafadas pelo impacto da cena, desenrolando histórias paralelas a respeito de assuntos que desconhecia, como guerra, disputa de terras, mistérios culturais e destruição. Algo sempre me impedia, porém, de avançar, de acessar as raízes de uma cidade e de uma vida que jamais fui capaz de compreender.


Irritada, bebi mais um gole do vinho, que desceu como pedra pela garganta cerrada. Quase assustei-me ao ver que havia alguém do meu lado, bem próximo a mim, aliás, o que não era comum naquele espaço, uma vez que a maioria das pessoas que ali frequentavam não vinham desacompanhadas, e por isso preferiam sentar-se às largas mesas redondas.


— Uma dose de uísque, por favor. — Pedia o rapaz de cabelos ruivos ondulados, que, tão graciosamente como um manto, cobriam parte de seus ombros. Usava roupas bem casuais, o que, de alguma forma, parecia combinar com a sua personalidade.


Talvez percebendo que eu o estava observando, ele se virou sutilmente para o lado, de modo que nossas faces se defrontaram, e eu pude confirmar o estranho sentimento de familiaridade que sua figura despertara em mim. Surpreso, examinou-me, com a boca entreaberta, como que para se assegurar de que o que estava prestes a dizer se adequaria às circunstâncias de sua memória.


— Helena? — Perguntou, com alguma insegurança. Balancei a cabeça, tranquilizando-o.


— Vinícius? — Devolvi a indagação, agora certa de que se tratava de quem eu imaginava. Por um momento, o incômodo de não se saber o que fazer a seguir amorteceu a conversa, deixando-nos à deriva de nossas oscilações. Arregalei os olhos, quando, interrompendo o devaneio, ele estendeu-me sua mão, acompanhando o gesto de um sorriso amigável.


— Que loucura! Parece que se passaram décadas! — Disse ele, curioso, enquanto apertávamos as mãos. Quanto mais o analisava mais cuidadosamente, mais suas feições irracionalizavam-se e assemelhavam-se às de uma criatura etérea, como as de um elfo, uma silhueta vacilante de um passado distante o suficiente do presente para ser considerado parte de um conto de fadas milenar. Por outro lado, o contato direto com o suor de seus dedos sinalizava a vivacidade dos acontecimentos, evocando o calor das manhãs de verão na sala de aula estreita, o ruído do ventilador barulhento e os risos dos alunos agitados em suas carteiras.


— Dez ou onze anos, não é? — Procurei soar o mais natural possível, embora estivesse ligeiramente desconfortável com o encontro repentino. Vinícius assentiu e, vendo que sua voz falhou no instante em que voltara a falar, levou o copo com gelo à boca, desculpando-se logo em seguida. Senti que era um homem de mais palavras do que os lábios poderiam reproduzir.


De fato, ele era uma pessoa interessante. Apesar de ter vivenciado grande parte dos meus anos escolares dividindo a mesma turma que a sua, eu mal conhecia seu comportamento e, certas vezes, confundia os eventos que ele relembrava, com certos detalhes, daqueles tempos. Contou-me sobre sua precoce paixão pela flauta de sopro, sobre as composições que elaborava durante as aulas, no sigilo do fundo da sala, onde se sentou durante todo o ensino fundamental. Sobre o divórcio dos seus pais e seu desejo de ser músico, embora seu pai lhe reservasse um futuro distinto. Aos dezoito anos, mudou-se para Belo Horizonte, por vontade própria, e entrou para a faculdade de arquitetura. Gostava de seu trabalho e, apesar de seu sonho ter ficado em plano secundário, ainda tocava em teatros e restaurantes com certa frequência.


Havia algo em suas maneiras que não permitia que eu me sentisse tensa, envolvendo-me de tal maneira que, quando me dei conta, relatava a ele fatos da minha vida, como se narrasse uma história de ninar para um bebê sonolento. Mudei-me com meu pai para a capital do estado aos quatorze anos, tão repentinamente como o badalar dos sinos da pequena catedral de Lírios D’água. Três anos depois, seu falecimento levou-me a viver com meus tios e primos mais distantes, em uma casa grande com um quintal maior ainda. A faculdade, no início, foi como uma tempestade para mim, mas após dois anos de Economia, decidi abandonar o curso e migrar para Ciências Sociais, que me cativava intensamente.


Conforme a conversa desenrolou-se e um momento oportuno surgiu, decidi perguntar a respeito da notícia reportada pelo telejornal naquela noite, fato que, por alguma razão, não se desprendia dos meus pensamentos por um segundo sequer.


— É mesmo? — Perguntou ele, admirado. — Não, não fiquei sabendo disso. Confesso que sou um tanto quanto alienado na maior parte do tempo. — Completou, com um meio sorriso, oferecendo-me um bolinho de chuva.


Depois de mais algumas histórias e risadas agradáveis, despedimo-nos e, apesar de sua insistência em levar-me até em casa, recusei, explicando que pretendia resolver outras pendências antes, mas agradecendo a oferta. Trocamos números de telefone, mas não havia se desenvolvido nenhum tipo de interesse entre nós, além da amizade que parecia começar lentamente a se desenvolver.


Àquela altura, a tempestade já havia passado, então caminhei, despreocupada, pelas calçadas, banhada apenas pela fina garoa que anunciava um céu limpo e sem estrelas à vista. Ansiosa, adentrei o pequeno centro comercial, na esperança de que o estabelecimento ainda estivesse aberto. A mulher entregou-me, com relutância, a sacola com as quinhentas gramas de argila que comprei, e carreguei, com ternura, no meu braço esquerdo.


Quando estava próxima de casa, quase senti meu coração pular para fora do meu corpo, ao olhar para trás, aturdida pelo barulho estrondoso, e ver um tronco alto atravessando todo o comprimento de um carro, completamente amassado, e, por sorte, vazio. Perturbei-me ao pensar que, se não fosse pela diferença de um metro, eu teria sido, nas palavras anteriores do motorista, esmagada por uma árvore.


Na mesma noite, comecei a esculpir imagens com argila. A obsessão apenas se engrandeceu nos dias e semanas seguintes, quando passei a me dedicar quase que em tempo integral à cerâmica. No início, não eram nada precisas, apenas moldagens aleatórias e um tanto tortuosas. Porém, com a mudança de ares da cidade, que, em menos de um mês, mergulhou no macabro de assassinatos e desaparecimentos inexplicados, devotei-me a uma tarefa diferente. Todas as vezes nas quais a mídia divulgasse imagens dos suspeitos dos crimes, eu posicionava-me em meu banco e iniciava as esculturas. Os traços que me dispunha a retratar eram mínimos, e eu me divertia com a presença assombrosa, quase que ameaçadora das faces espalhadas ao longo do apartamento. Às vezes pensava que havia enlouquecido, temendo pelo avanço daqueles mistérios, dos assombros da infância, na atualidade dos meus dias. Ao mesmo tempo, para mim o sentimento era de que, curiosamente, nunca havia estado mais lúcida e consciente de meus atos. A atividade artística era curativa e apaixonante, e rendia-me tranquilidade imensa. Como consequência, passei a interessar-me, também, pela agenda ambiental, e, inclusive, a comunicar-me com meus colegas e amigos mais assiduamente.


Foi em uma dessas tardes de criação empenhada que Vinícius tocou a campainha. Não nos víamos há mais de um mês, por isso abalei-me com a sua presença e aparência cansada. Parado na porta, ele explorou cada pedaço dos arredores, como se caçasse pelas esculturas das cabeças que o encaravam, com certa desconfiança.


— Quem são elas? — Perguntou. Seu tom revelava impaciência.


Balancei os ombros, em sinal de desimportância.


— Por que não me contou sobre isso? — Insatisfeito, ele percorreu a sala de estar, fitando os objetos. Não compreendia sua irritabilidade em relação ao assunto.


— Mas eu te contei. — Respondi, com firmeza. Mas seu olhar me questionava: “não me contou a respeito das proporções de tudo”. Senti que me julgava, que pensava que eu era maluca. — Só não pensei que fosse algo relevante...


— Quero que faça uma escultura minha. — Disse, agora com mais serenidade


— Agora? — Surpreendi-me com a urgência em sua voz


— Por que não? — Observou-me, indicando com os olhos meu avental sujo de poeira e argila. — Está ocupada?


Hesitante, embora não gostasse das provocações sutis, indiquei que ele se sentasse no sofá vermelho de dois assentos, enquanto eu preparava o material e movia o banco e a pequena mesa para a posição certa.


Seu rosto permanecia idêntico, apenas composto por pequenos indicadores de exaustão, como as bolsas arroxeadas debaixo dos olhos e barba, conferindo a ele um aspecto mais executivo e adulto. Foram horas de silêncio absoluto, a existência apenas da ponte entre criador e modelo, e de todos os efeitos que se carregam com ela. Vinícius mantinha a expressão quase que vazia, ao passo que demonstrava euforia para ver o resultado final.


Assim que terminei, virei a obra, que ainda precisava de tempo para secar, em sua direção. Ele parecia extremamente intrigado, mas não emitiu uma única palavra. Tudo o que fez foi virar-se de costas, apoiado em uma das quinas da janela, parcialmente oculto pela cortina de seda. O tempo que passou ali pareceu prolongar-se por uma eternidade e começou a causar-me incômoda agonia.


— Vinícius? — Demandei.


Ele sequer se moveu.


— Vinícius? — Aproximei-me, cautelosa. De repente, iniciou-se um chiado, que logo converteu-se em uma risada, cínica e profunda, causando-me arrepios por todo o corpo. Com medo, empunhei, discretamente, o canivete que guardava no bolso e utilizava para reparar os erros e adicionar detalhes nas esculturas.


— Vinícius, o que quer que essa brincadeira seja, pare agora! Você sabe que não gosto desse tipo de coisa! — Afirmei, da maneira mais segura possível.


Depois de dolorosos segundos, o ruído cessou, e, gradualmente, ele se virou para mim. Afastei-me, agora apontando a ferramenta diretamente para ele, impedindo que se aproximasse. Mas ele não o fez. Em vez disso, andou decididamente para a porta, sem olhar para trás. O que era aquilo? Eu merecia uma explicação.


— Não! — Falei, desesperada. Ele recuou a mão da maçaneta.— O que significa tudo isso?


— Olhe para o passado. — Disse apenas, fitando-me de soslaio. Em seguida, fechou a porta atrás de si, deixando-me somente com a penumbra de milhares de questionamentos que não sabia por onde começar a buscar responder.


Autora: Gabriela Queiroz Gomes Galdino

Design: Lara Belico

 
 
 

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